Existem dias que nos fazem recordar a essência do nosso trabalho.
A visita da PNP à ACPP – Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal foi um desses momentos. Um daqueles instantes que não se planeiam com expectativa, mas que nos surpreendem com a força silenciosa da história.
A ACPP, conhecida sobretudo pela formação de cozinheiros, é muito mais do que uma escola. É um ponto de encontro entre tradição e futuro, uma casa que guarda não só técnica, mas memórias que constroem a identidade da gastronomia portuguesa, https://www.acpp.pt.
Foi ali, no coração desta instituição, que me deparei com algo que não esperava: uma biblioteca onde as prateleiras falam, literalmente, do passado do pão português.
A Biblioteca que Cheira a História
Entre estantes altas e volumes de lombadas gastas, encontrei uma coleção que me prendeu no tempo: a “Revista Portuguesa de Panificação”, cuidadosamente encadernada, com exemplares desde o início dos anos 60 até ao final dos anos 80.

Livros espessos, de capa verde texturada, marcados pelo uso, pelas décadas e pela dedicação de quem os preservou.
Abri o primeiro exemplar como se estivesse a abrir uma porta para uma padaria de 1962.
E a viagem começou!

As páginas amareladas revelavam anúncios, editoriais, artigos técnicos e até polémicas da época. O mais surpreendente?
Quase tudo o que se discutia há 60 anos continua a ser discutido hoje.
Um Legado Chamado Virgílio Gomes
Antes de avançar, um reconhecimento que não pode faltar.
Parte deste espólio chegou à ACPP graças à generosidade de Virgílio Gomes, investigador, gastrónomo e uma das vozes mais influentes na defesa da cultura alimentar portuguesa.
O seu contributo não vive apenas nos livros que ofereceu, mas também no trabalho contínuo que partilha publicamente, seja através do seu site — https://www.virgiliogomes.com — e onde documenta histórias, produtos e tradições gastronómicas, seja no seu Instagram — @Virgílio Santos Nogueiro Gomes — onde divulga quotidianamente a riqueza da mesa portuguesa.
O seu legado, tanto físico como digital, é hoje uma referência para todos os que procuram compreender o percurso, a identidade e a evolução do pão em Portugal.
O que revelam estas revistas? Muito mais do que esperávamos.
Folhear as revistas é perceber que os padeiros de outrora enfrentavam dilemas que reconhecemos perfeitamente em 2025.
1. A obsessão pela frescura
Um anúncio da época proclama os méritos da “Levedura Activa”, apresentando-a como capaz de resistir a longas distâncias e manter a “forte atividade”.
É impossível não sorrir: esta procura por frescura e estabilidade é a mesma que vemos hoje nas padarias, na indústria e até na grande distribuição.

A tecnologia mudou, mas a necessidade é a mesma.
2. A qualidade das matérias-primas
O sal “VATEL”, “puro” e “refinado”, era promovido como garantia de bons resultados.

Hoje discutimos farinhas limpas, fermentação lenta, cereais nacionais.
Ontem discutia-se sal. A essência é intemporal.
3. A constante necessidade de modernização
As páginas dedicadas à “Técnica Moderna ao Serviço da Panificação” mostram amassadeiras elétricas, embaladeiras automáticas e fornos mais eficientes.
Em pleno século XXI discutimos automação, eficiência energética, sustentabilidade, digitalização, controlo de fermentações.
Nada disto é novo. A inovação sempre foi o motor do setor.

4. Preço, valor e rentabilidade: o debate eterno
As tabelas de preços do pão, meticulosamente organizadas por categorias, peso, tipo e preço ao domicílio, revelam a mesma tensão que ouvimos hoje nas conversas com padeiros:
O custo das matérias-primas.
A margem estreita.
A necessidade de garantir um preço justo.
O impacto no consumidor final.

Podia ser um debate de 2024, mas é de 1967.
5. O pão como assunto de Estado.
Um artigo sobre a presença da indústria da panificação na Assembleia Nacional mostra que o setor já era considerado estratégico para o país, tanto do ponto de vista económico como do ponto de vista social.
Hoje falamos de soberania alimentar, de cereais portugueses, de políticas públicas de incentivo à agricultura.
Há 60 anos, discutia-se o mesmo, numa linguagem mais formal e com outras prioridades… mas com o mesmo fundo.

6. O regresso às tradições: o pão de lenha
Uma reportagem intitulada “O Pão de Lenha que Lisboa Come” descreve padarias da zona de Lisboa que preservavam métodos ancestrais, mesmo com a chegada das tecnologias modernas.
É irresistível reconhecer o paralelismo: hoje celebramos novamente o pão de lenha, o pão rústico, o pão de fermentação lenta e longa.

A tradição nunca desaparece verdadeiramente. Recolhe-se e regressa mais forte.
7. A eterna dependência do trigo importado.
Um artigo sobre as compras de trigo à CEE (a futura União Europeia) discute limitações, preços, impactos económicos e a necessidade de assegurar qualidade e quantidade.
Este debate, em 1966, é exatamente o debate de hoje. Portugal continua dependente da importação de cereais.
E continuamos a refletir sobre como fortalecer o cultivo nacional.

No meio das páginas técnicas, das tabelas de preços e das reflexões económicas, encontrei um texto que, à primeira vista, parece deslocado. Mas não está.
Aliás, talvez seja um dos mais importantes de todos.
O título era simples: “Como Dirigir o Pessoal”.
E o que nele se lia podia ser transcrito, palavra por palavra, para qualquer formação atual de gestão de equipas, liderança ou recursos humanos.
Falava-se de algo que continua a ser o coração de qualquer padaria. Não são as máquinas, nem as farinhas, nem os fornos.
São as pessoas.
Os padeiros.
Os forneiros.
Os ajudantes que começam ainda antes de amanhecer.
Os que carregam, sovam, moldam, vigiam, esticam, limpam, alimentam o fogo e mantêm viva a alma da padaria.
O artigo defendia que:
“Um empregado bem dirigido é um empregado produtivo.”
E o mais interessante é que, mesmo na década de 1960, já se discutia a escassez de mão de obra, a dificuldade em reter bons profissionais, a necessidade de valorizar quem trabalhava duro.
O texto da revista lembra-nos, com uma simplicidade desarmante, que panificar é um ato profundamente humano.
E que a qualidade do pão começa, sempre, na qualidade da equipa.
O Que Esta Visita Significa Para a Plataforma Nacional do Pão
Após horas mergulhadas nestas páginas antigas, ficou mais claro do que nunca:
A Panificação portuguesa é um diálogo contínuo entre passado e presente!
Os padeiros de hoje seguem os passos dos mestres de ontem, com as mesmas preocupações, os mesmos desafios e o mesmo desejo de fazer melhor.
Para a Plataforma Nacional do Pão, este espólio não é somente um achado, é um farol. Mostrou onde estivemos, ajuda-nos a perceber onde estamos e lembra-nos da responsabilidade de construir o futuro.
Estamos a valorizar o que sempre foi valioso.
Estamos a dar voz ao que sempre fez parte de nós.




